22 de setembro de 2008

O Teatro de Willian Shakespeare

Shakespeare e seu Teatro



Há uma impressão generalizada de que só os eruditos podem entender as peças de Shakespeare, mas – é óbvio – não as compôs o dramaturgo expressamente para leitura, e sim para agradar às multidões que assistiam aos espetáculos de sua companhia. Afirma-se, até, que certas cenas e expressões inconvenientes do seu teatro representam condescendências de mau gosto a uma camada inferior de espectadores. Há contrastes de linguagem e de idéias em suas peças que justificam essa crença, e o próprio dramaturgo, pela boca de Hamlet, implicitamente admite as transigências exigidas pela maior parte das platéias contemporâneas:
... “The play, I remember, pleased not the million
[1]” “twas caviare to the general[2]” (II, 2-457). Embora tivesse dado mais caviar às multidões do que necessário, Shakespeare não se despreocupava do alimento de substância...
Alguns de seus temas se reportam, por isso mesmo a estórias e lendas populares ou folclóricas, recriadas com os mais poderosos e sutis recursos da poesia e da música, que para ambas havia excepcional receptividade na época elisabetana.
Suas peças – com a incomparável poesia dramática e os famosos cantos que ressoam em muitas delas – exploram largamente a capacidade de escuta dos expectadores que, deste modo, acompanhando as representações, enriqueciam muito mais os ouvidos e a imaginação do que os olhos. Ainda por uma circunstância, e é que, devido à ausência de cenários, as indicações locais eram quase sempre feitas através da fala dos personagens. Isso obrigava os espectadores a uma atenção auditiva muito mais aguçada do que a exigida hoje pelo teatro.
A linguagem poética das peças shakespearianas supre magnificamente essa falha criando uma ilusão empolgante da realidade em todas as circunstâncias. Em determinada cena de Henrique V, impunha-se que os espectadores tivessem uma visão marítima. Surge o Coro, e projeta-se na imaginação do auditório, advertindo: “Oh! Tratai de pensar que estais sobre a praia e que observais uma cidade bailando sobre as vagas inconstantes; pois tal é o espetáculo que apresenta essa frota majestosa ao dirigir sua marcha direta para Harfleur”.
As representações se faziam sempre à luz do dia e, no entanto, é de noite que ocorrem algumas famosas cenas do teatro shakespeariano. Haja visto o primeiro ato de Hamlet, com a aparição do fantasma do rei ou o segundo de Macbeth, esse admirável drama cuja irrespirável atmosfera moral é uma emanação trágica da treva circundante. O maior encanto do último ato de Mercador de Veneza consiste em algumas sugestões lunares, entre as quais se conta uma das mais belas imagens da peça: “Como dorme o luar tão sossegado neste banco de verdura!”.
Uma vez entendido que, ante o limite das convenções, o dramaturgo, mais mágico do que lógico, não tinha mãos a medir nesse terreno, desfiando todas e quaisquer incongruências, será menos difícil assimilar a beleza de suas criações. Surge, porém outro problema ainda mais perturbador que o dessas criações: o da gênese propriamente de cada uma de suas peças. Não há prova direta de que qualquer delas tivesse sido escrita por Shakespeare, simplesmente porque de sua letra só se conhecem alguns fragmentos. Umas foram publicadas em vida do dramaturgo, outras depois de sua morte. Eis tudo. Quanto a autógrafos, existem apenas seis assinaturas do nome de Shakespeare consideradas como sendo autênticas: três delas estão no seu testamento.
Em 1916, baseando-se nesses autógrafos, um paleontólogo britânico atribuiu ao dramaturgo alguns trechos da peça Sir Thomas More, cujo manuscrito traz letra e emendas de outros colaboradores. Esse código é típico das irregularidades que apresentam os originais da época, sendo portanto naturais as intermináveis divergências entre os interpretadores de seus textos.
Como apareceram em letra de forma as peças de Shakespeare? Primeiramente em “Quartos
[3]” e depois em “Fólios[4]”. Aqueles têm duas classificações: “Bad Quarto” e “Good Quarto”. As deste último formato teriam sido impressas conforme os manuscritos autógrafos do dramaturgo. De um modo geral, os “quartos” eram prompt copies (livros de ponto), acreditando-se que algumas peças foram clandestinamente captadas por meio de estenografia. A piratagem editorial agia, então, com o maior desembaraço. Há uma interpretação crítica do Hamlet que surpreendeu nessa tragédia a alegoria de uma represália do dramaturgo aos espoliadores de suas peças.
Os editores do “Folio” adotaram a versão do desempenho teatral, publicando as peças exatamente como eram representadas. Se completas ou não, ignora-se, mas alguns pesquisadores encontram indícios de que foram omitidas linhas ou trechos de Shakespeare e acrescentando outros. Em conseqüência, sustentam que, na composição ou no arranjo final de suas peças, o dramaturgo teve colaboradores, e colaboradores às vezes medíocres, mas com influência sobre o preparo das mesmas para representação. Não se deve olvidar
[5], enfim, que as escreveu designadamente para o teatro, razão porque estariam em prompt copies quando foram levadas a imprimir.
A representação durava mais ou menos duas horas. Algumas peças excedem esse limite mas é de crer que fossem adaptadas, previamente aquele horário. Se não, será forçoso admitir a hipótese já articulada de que os atores falavam mais depressa do que pe habitual em nossos tempos. O Hamlet que, em um desempenho integral, exigiria cerca de quatro horas e meia, na cena moderna é como um gigante no leito de Procusto.
Há um cânon
[6] clássica que tem subsistido a todas as controvérsias em torno da autenticidade do teatro shakespeariano e assenta no seguinte: 36 peças atribuídas a Shakespeare no primeiro “folio”, publicado sete anos após seu desaparecimento; 13 já haviam sido estampadas no “Quarto”; 11 foram dadas como de sua autoria em 1598 quando o dramaturgo ainda existia, e 5 outras através de referências eventuais de seus contemporâneos. Faltava a peça Péricles incluída no terceiro “Folio”, que saiu em 1663.
Como as viram em cena os contemporâneos? Além da falta de cenários, sem pano de boca e sem interrupção, porque as peças não estavam dividias em atos e, em conseqüência, o auditório não tinha oportunidade de acompanhar por etapas o desenvolvimento da ação dramática. A impressão resultava do desempenho total, com se dá hoje, com os freqüentadores de cinema. Quando, posteriormente, as peças shakespearianas passaram a ser representadas de acordo com as divisões clássicas, isto é, em cinco atos, as inconstâncias se tornaram mais visíveis. Por sua vez, a leitura estudada dessas peças também criou uma nova escala de valores para o respectivo julgamento crítico, tão rigoroso às vezes que muitos letrados se esqueças de que Shakespeare as compôs para imediato desempenho cênico, tendo sido impressas com defeitos inerentes a essa finalidade.
Não há entretanto como condenar por isso a crítica shakespeariana; o maravilhoso fenômeno criador que a domina de maneira absorvente leva a imprevisíveis direções, sendo particularmente desconcertante a dos chamados desintegradores. Isto é, críticos que enxergam muitas mãos onde outros só vêem a do homem de Stratford-on-Avon.
O certo é que, no conjunto das peças atribuídas a Shakespeare, a poesia dramática aliada a várias concepções científicas e filosóficas, umas tradicionais, outras revolucionárias, forma uma idéia peculiar do Homem e do Universo que, pela unidade interior do pensamento e pela substância da linguagem, revela o predomínio de um gênio individual. O maior do mundo moderno.


Eugênio Gomes









Atualidade de Shakespeare




A literatura do passado vive realmente? Ou só existe entre a folha de rosto e o colofão[7] de volumes nas estantes? E pode chegar um dia em que, conforme Spengler, “um quadro de Rembrandt ou uma sonata de Beethoven só significarão um pedaço de pano e uma página de papel coberta por sinais incompreensíveis?”.
Shakespeare parece protegido contra esse destino porque é dramaturgo. É, no quinto século de sua existência, o dramaturgo mais representado do mundo: o que significa sua permanente atualização nos palcos. Mesmo se deixar de ser lido, ficará vivo dentro da pele dos atores. É esta sua atualidade permanente, garantida pelos grandes papéis que criou: Hamlet, Falstaff, Shylock, Lady Macbeth, Othello, Richard III. Mas advertimos que o tempo dos grandes virtuosos no palco já passou. Nenhum ator é, hoje em dia, elogiado por ser um Shylock ou um delicioso Falstaff. O cinema matou essa espécie de “estrelato”. Fracassaram e já estão esquecidas outras tentativas de “atualizar” Shakespeare, como a de representar “Hamlet” em trajes de hoje. Tampouco vale outra maneira de atualizar o dramaturgo, relacionando-lhe os enredos com acontecimentos e preocupações nossas que ele fatalmente ignorava: “Macbeth” como tragédia do ditador, “Coriolano” como revolta fascista reacionário e traidor, “Othello” como representação do problema racial e “Shylock” como alvo do anti-semitismo. “As you like it” como poesia de week-end e “A Tempestade” como alusão às utopias e como (personagem de Caliban!) profecia da revolta contra o colonialismo. Uma peça como “Rei Lear” nunca pode ser “atualizada”, nesse sentido, e passou realmente, durante muito tempo, por “impossível no palco” ou “da grandeza mítica, mas inatingível”.
Mas quando o “Rei Lear” foi no ano de 1984 representado em Paris pela Royal Shakespeare Company sob a direção de Peter Brook, então o público e a crítica parisiense, acostumados a gostar do dernier cri, reconheceram na velha peça um pessimismo existencial em comparação com o qual Samuel Becker parece “café pequeno”. É esta a verdadeira atualidade de Shakespeare: nossa experiência diferente descobre, ou melhor, descobre novas facetas da obra. Assim em “Othello”, a tragédia doméstica por excelência, nos interessa primordialmente Iago, a negação encarnada, um personagem dostoievskiano em trajes renascentistas. Compreendemos porque o dramaturgo cometeu o anacronismo de citar Maquiavel em “Richard III”. Empson descobriu o sentido social da poesia pastoril de “As you like it”. A erotomania do século XX ajuda para entender melhor a tragédia política de “Antônio e Cleópatra”. O mais difícil desses problemas é mesmo o amor.
Pois há mais de quatrocentos anos atrás as expressões petrarquistas do amor não estavam tão gastas como hoje. “Romeo e Julieta”, peça da mocidade de Shakespeare e ainda não no mesmo nível das grandes tragédias, só pode ser admirada como “a” tragédia do amor, com artigo definido, por gente moça, literariamente inexperimentada. Mas descobrimos hoje mais outras coisas nessa peça. Que é que faz tragicamente fracassar o amor dos dois jovens? É a honestidade insensata entre as duas famílias às quais pertencem, hostilidade que há muito perdeu o sentido. Razão tem Mercutio ao gritar mortalmente ferido e agonizante: “A plague over both your house!” A luta entre feudalismo e capitalismo nos países novo também faz pensar: “Uma praga sobre as vossas duas casas!”.
Os motivos políticos são freqüentes na sobras de Shakespeare. Representações de “Coriolano” já deram, em vários países, ensejo para manifestações violentas na platéia: o aristocrata romano que, por ódio contra a democracia, colabora com os inimigos de sua cidade, parecia o protótipo do fascista, e como fascista foi aplaudido e vaiado. Mas sabemos hoje que na situação de Coriolano é capaz encontrar-se o adepto de qualquer ideologia. Assim como “há fatalmente heréticos” assim há fatalmente os traidores. O problema de “Coriolano”, que só hoje compreendemos, é o da lealdade dividida.
Assim como Coriolano não é o protótipo do fascista, assim Macbeth não pode ser aquilo em que tantas representações depois e 1945 o transformaram: o tipo ditador despótico, um Hitler ou Mussolini ou Stalin medieval. Se fosse, seria incompreensível a simpatia trágica que o assassino Macbeth sempre inspirou e inspira a qualquer público. O tema da peça é a fraqueza humana do tirano, essa fraqueza que lhe coloca na boca as palavras da mais profunda poesia pessimista da literatura universal.
Essa interpretação também ajuda a eliminar da interpretação de “A Tempestade” as falsas “atualidades”, as alusões às utopias sociais e Caliban como símbolo (hostil aliás) das populações coloniais. O tema da peça é a própria ilha encantada, transformando todos que pisam nela. É a poesia. Por isso “A Tempestade” é, sempre se saiba disso, a mais poética de todas as obras de Shakespeare.
As pelo mesmo motivo esteve a peça durante séculos excluída dos palcos. Hoje, é das mais representadas. Mudaram muito as preferências. Em certos países latinos, um atraso dos conhecimentos ainda manda considerar “Hamlet”, “Julius Cesar” e “Romeo e Julieta” como as obras capitais de Shakespeare: e há pseudo “Scholars”, considerados assim porque sabem ler inglês, que mantêm o equivoco. As três peças são as maravilhosas manifestações do gênio de Shakespeare antes dele alcançar a plena maturidade. Sim, são obras da mocidade. Não podem ser perfeitas. “Hamlet” tampouco é perfeito; e reside justamente nisso seu encanto. T.S. Eliot foi o primeiro que reconheceu que Shakespeare não conseguiu dominar inteiramente o enredo complexo e que é isso a causa das obscuridades da peça. Daí a possibilidade de inúmeras interpretações que tão pouco chegam a resolver todos os problemas da peça. A obra é mesmo problemática. Tillard incluiu-a entre as “peças problemáticas” de Shakespeare, que antigamente foram todas elas, relegadas para o segundo plano, enquanto hoje inspiram o maior interesse. Assim “Timon”. Assim “Troilus e Cressida”. Assim “Medida por Medida”, antigamente quase nunca representada, porque o enredo – amores ilícitos, cenas de bordel etc. – parecia licencioso demais. Também foi muito censurada, porque a fabulosa lei, na peça, que pune de morte o amor extramatrimonial, produz cenas das mais trágicas na prisão e das horas angustiosas antes da execução – mas a peça acaba como comédia! Tentou-se aproveitar a impossibilidade intrínseca de uma lei daquelas para interpretar a peça como colocada num país de contos de fadas e tudo como mero divertimento teatral. Mas a luta, na peça, entre o puritanismo hipócrita da lei e a fraqueza humana dos seus agentes é representada com funda autenticidade, encontrando Shakespeare expressões de superior sabedoria política.
Na verdade, não precisávamos de nenhum Escândalo Profuso – isto seria a falsa atualidade da peça para compreender a estranha combinação que “Medida por Medida” apresenta: política e prostituição, moralismo puritano e erotismo irresistível, sentido e absurdo da lei e de todas as leis, licenciosidade e angústia, sexo e morte. A peça reflete a condição humana. E não há nada que seja de atualidade tão permanente como a condição humana.


Otto Maria Carpeaux





“Non sanz Droict”:
Em defesa de William Shakespeare




Passo a vida fascinada diante do número de pessoas que parecem considerar que é mais fácil escrever toda a vasta e eruditíssima obra de Francis Bacon e mais a íntegra da obra shakespeariana, ou escrever a juvenil e genial obra de Christopher Marlowe e mais a íntegra da obra shakespeariana, ou ser o inexpressivo 6º Conde de Derby, ou o modesto poeta lírico Conde de Oxford, ou mais meia dúzia de outros, e ainda escrever aquela mesma obra, do que simplesmente ser William Shakespeare, homem de teatro e gênio. Cada vez mais me convenço que essas teorias são criadas por quem não se conforma com a existência do gênio, sentindo-se por ele diminuído, injustiçado. E, no entanto, ninguém mais indicado para ser aceito como único e verdadeiro autor de sua obra quanto o gentil mestre Shakespeare, ator, autor, empresário, que tem a seu favor aquilo que só um entre os pretendentes ao título – Christopher Marlowe – pode, e assim mesmo em termos, reclamar para si: ser homem de teatro. Mas Marlowe morreu aos 29 anos, e a recôndita teoria que o ressuscita para escrever a obra de Shakespeare não convence a ninguém a não ser àqueles que não têm outro desejo senão o de serem convencidos mesmo antes de lê-la. E assim continuam as estantes das bibliotecas a serem periódica e dubiamente enriquecidas por um número surpreendente de obras de uma pseudo-erudição nas quais já foi perdida toda objetividade, toda ligação com a realidade. Shakespeare é descrito como um incompetente, analfabeto, quase retardado mental, sem nenhuma consideração sequer pelo respeito que Ben Jonson tinha pelo seu contemporâneo. E, no entanto, parece-me que a divisa que, por outras razões, Shakespeare adotou para o seu brasão de armas – Non Sanz Droict – sintetiza também o direito do homem de Stratford de reclamar para si o título de autor do mais importante conjunto de obras dramáticas até hoje no mundo.
Se não, vejamos. Shakespeare é a perfeita cristalização de uma escola teatral que foi desenvolvida na Inglaterra durante um período de quase cinco séculos; não existe no aparecimento desse autor nada de inesperado ou surpreendentemente revolucionário, seja em forma seja em conteúdo: é ausente de sua obra a erudição livresca de Ben Jonson, a disciplina intelectual de Spencer, o conhecimento quase que universal de Francis Bacon. É comum, por exemplo, a divisão da obra dramática shakespeariana em três gêneros: comédias, peças históricas e tragédias; ora, não só esses três gêneros já estavam estabelecidos como formas altamente características da dramaturgia elisabetana – tal como ela se definiu na obra os University Wits – como também todas três encontram suas raízes mais profundas nas formas medievais do Interlúdio, da Crônica e da Moralidade. A existência prévia dessas formas não diminui em nada a qualidade de Shakespeare, mas é preciso lembrar sempre que o teatro que esse homem escreveu foi um teatro primordialmente popular, escrito nas formas que mais atraiam a massa do povo de sua época. Se hoje em dia – e no nosso caso em outro país – há quem encontre dificuldade, por exemplo, com as longas listas de nomes de nobres que tomaram arte nesta ou naquela batalha, é preciso lembrar que os mesmos eram, para a massa do povo naquele tempo, tão familiares quanto seria hoje aqui os políticos mais conhecidos ou os campeões de futebol; tais argumentos não pretendem fazer mais do que lembrar o quanto à matéria shakespeariana era accessível a um homem inteligente, alerta, que recebera no gramma school de Stratford – um dos melhores da Inglaterra – ensinamentos de inglês, latim, retórica e religião: se Shakespeare não era formado por uma universidade, tão pouco era ele de origem tão humilde de não tivesse desde a infância a possibilidade de estar em contato (por pouco formal que fosse) com as correntes dominantes da cultura de sua época.
Em Stratford, é muito pouco provável que Shakespeare tivesse visto, no alço, mais do que alguma produção amadora de velhos textos medievais, a não ser que – como já foi aventado – tenha visto de respeitosa distância os luxuosíssimos festeiros do castelo de Kenilworth em 1575, quando Elizabeth foi hospede de Leicester: uma coisa ou outra seria o bastante para provocar a paixão elo teatro, que não exige experiências estéticas excepcionais para ser desencadeada, como é possível verificar por inúmeros exemplos contemporâneos. O grande mistério shakespeariano, na verde, é o período de dez anos de sua vida a respeito do qual não se sabe nada: ao 18 anos casa-se com Anne Hathaway, os três filhos nascem nos próximos três anos, mas só em 1592 (aos 28 anos) é que se encontram os primeiros documentos de sua atividade teatral, já reescrevendo peças e fazendo mais sucesso do que seria agradável aos autores que até então vinham dominando os palcos londrinos. É claro que deve ter chagado a Londres algum tempo antes, pois não é provável que fosse escolhido para reescrever peças logo no primeiro dia, mas como terá Shakespeare usado esses dez anos para preparação da carreira futura, até hoje não foi possível saber: uma velha tradição diz que seu primeiro emprego teatral foi o de tomar conta de cavalos dos espectadores durante o espetáculo, e a mim ela parece tão plausível quanto qualquer outra, se o objetivo de William Shakespeare era entrar para o teatro, não me parece que ele fosse tão esnobe que pudesse menosprezar a entrada das cavalariças desde que a porta eventualmente conduzisse ao interior do mundo sonhado.
Uma vez entrado nesse mundo a carreira de Shakespeare corre coerente, e progride de modo nunca surpreendente, desde que se admita o imponderável do gênio: sua primeira tarefa de reescrever material alheio bem como os hábitos teatrais da época contribuem para a soberana indiferença que sempre terá em relação à originalidade do tema: usa histórias, poemas, narrativas ou mesmo peças já conhecidas, e transforma-as em coisa sua, simplesmente por ver mais fundo o seu significado por dar-lhes maior intensificação poética, por encontrar aquele perfeito equilíbrio de forma e conteúdo que permite à idéia a sua realização total. Mas tudo isto vem aos poucos: a princípio, experimenta sucessivamente todos os gêneros em voga, com o que vai apurando ao mesmo tempo a técnica e o estilo. Ao mesmo tempo, escreve seus poemas longos (muito à feição da época) e os sonetos, com o que penetra no mundo da nobreza elisabetana, até mesmo do pequeno círculo literário dominado pela condessa de Pembroke. No teatro, na fervilhante cidade de Londres na corte e sua periferia Shakespeare respira no ar os pensamentos predominantes da época, capta com sua mente agilíssima a essência do mundo à sua volta, vê como vivem todas as camadas sociais, e de tudo isso se serve, mas se serve com amor, e quando põe no palco um assassino, uma dona de taverna ou um rei não nos mostra o que pensa deles mas si o que eles lhe mostraram que são.
A todos os momentos, Shakespeare é um homem de teatro: ator, conhece todos os segredos do palco, as possibilidades dos intérpretes e a capacidade do público para assimilar o que lhe é apresentado. Escreve sempre para o seu teatro, os seus atores e o seu público, e neste último encontra perfeita receptividade para os três gêneros dominantes: os amores e casamentos socialmente díspares das comédias eram plausíveis para quem via aventureiros receberem títulos nobiliárquicos[8]; o endeusamento dos heróis do passado inglês nas peças históricas correspondia a uma necessidade premente de realização em forma palpável da exaltação patriótica de um país em plena ascensão; e o triste destino de traidores ou favoritos de ontem, aliado à moralidade e filosofia reiteradas em inúmeros e longuíssimos sermões, davam ao público as coordenadas das tragédias que aplaudia delirantemente. Não se pode limitar o significado das peças Shakespearianas às simplificações acima, mas não procuro aqui mais do que indicar alguns dos caminhos da identidade entre o autor e público.
Com o passar do tempo o que acontece é m aprofundamento progressivo no tratamento: as peças históricas da segunda tetralogia, os homens são estudados com maior penetração do que nas comédias, e nas grandes tragédias com mais penetração do que as peças históricas, mas tudo depende daquilo que Shakespeare havia sempre estudado e daquilo que lhe era mais acessível para o estudo: a natureza humana. E sendo homem de teatro, ele sabia que, no palco, tudo tem de ser um pouco maior do que na vida real, pois nessa medida os problemas podem ser jogados com mais clareza e conseguem ocupar toda a imaginação do espectador obrigando-o a participar intensamente do espetáculo e levando-o assim a compreender melhor o mundo que o cerca.
Não é, portanto, sem direito que William Shakespeare, de Stratford, pode e deve ser apontado como o autor dessa vasta obra dramática. Muito pelo contrário, é justo que a sua figura individual fique um pouco na penumbra, pois o seu privilégio destino tornava necessário que ele abdicasse de uma personalidade marcante para se transformar numa espécie de corporificação da ética, estética e política elisabetanas, por intermédio da qual foi possível àquele período ser inteiramente retratado. Por sorte nossa a época era fluida, momento de grandes e graves mudanças sociais, políticas e filosóficas, o que torna a sua posição de autor-espelho imensamente rica. Para um homem como Bem Jonson, que queria reformar a sociedade, recuperando-a para padrões morais de um passado idealizado, é realmente necessária uma cultura excepcional; não para William Shakespeare, que queria apenas amar os homens, retratá-los e compreendê-los, grammar school de Stratford era trampolim mais que suficiente.


Bárbara Heliodora






A LINGUAGEM DE SHAKESPEARE



Sabendo que cada homem vive ao mesmo tempo na sua realidade cotidiana e no universo de seus pensamentos e de seus sentimentos, Shakespeare, utilizou um método que nos permitiu ver ao mesmo tempo o comportamento exterior e as elucubrações[9] de seu espírito. Pode-se distinguir facilmente, pelo ritmo da linguagem e a escolha das palavras, o momento em que nos aparece como um ser colocado na vida real, nominativo, tal como o poderíamos encontrar na rua; mas, na rua seu rosto pode ser anônimo e ele pode ficar calado. O verbo de Shakespeare dá densidade aos seus retratos. Tal é a finalidade de suas metáforas notáveis, de sua frases cheias de ressonâncias. Não se pode mais continuar pretendendo que tais obras sejam estilizadas, românticas nem prisioneiras de uma forma oposta ao realismo.
Nosso problema é levar o ator a compreender pouco a pouco essa invenção notável, essa curiosa estrutura de verso livre e de prosa – que era, há alguns séculos, uma espécie de cubismo teatral. Devemos levá-lo a buscar uma realidade mais profunda no verso, a realidade das emoções, das idéias, dos personagens, a encontrar com objetividade a forma que lhes dará a vida.



Peter Brook





Nós hoje consideramos Shakespeare um grande poeta, mas devemos ficar certos de que ele não escreveu com o intento de fazer literatura. Ele escreveu peças teatrais. Foi essa a sua profissão. Literatura ele só fez casualmente, com exceção dos seus poemas e sonetos. Não escreveu as suas peças para serem lidas, escreveu para que fossem representadas.
As traduções de Shakespeare devem ser escritas para os ouvidos e não para os olhos. Uma linguagem que se dirige aos ouvidos deve ser clara e direta, para que o ouvinte perceba cada palavra e chegue ao pleno prazer espiritual da obra. Há um preconceito muito duvidoso em certas camadas intelectuais. Acham os partidários desse preconceito que linguagem e estilo de uma grande obra de arte devem ser obscuras e ininteligíveis. Mas o espectador no teatro não tem tempo de traduzir um texto obscuro em linguagem corrente, naquele lapso de tempo que lhe deixa o fluxo das palavras para refletir. Cada palavra que ele não percebe perturba o espectador e prejudica o desenrolar da ação no palco e com isso o êxito da peça.



Willy Keller




Shakespeare apresenta uma harmonia excepcional entre conteúdo e forma; com isso, queremos dizer, não só que tem uma construção especificamente dramática para apresentar suas idéias, como também que encontra ritmos e sonoridades particularmente felizes para transmitir a ação por meio do diálogo. Para ilustrar essa identidade entre intenção e expressão, basta lembrar que após a morte de César (Julio César), falam Brutus e Marco Antônio: o primeiro apela para a razão e fala em prosa, o segundo, para a emoção e fala em verso.



Bárbara Heliodora




Traduzir Shakespeare em linguagem afetada ou literária em determinado sentido, pode ser a escusa para um mal compreendido horror ao anacronismo ou para um ridículo apego à famigerada nobreza de estilo, mas no fundo, tratando-se de Shakespeare, constitui uma traição, a pior delas, talvez. Compreender-se-ia tal sistema em relação a um Corneille ou a um Racine, cujas personagens, um tanto guindadas, se nos apresentam em atitudes hieráticas, nos atos culminantes das suas vidas, distanciadas do trivial e do quotidiano, o que as torna como que simbólicas, transformando as suas paixões em pura abstrações. Tal circunstância teria de se refletir na linguagem que falam, necessariamente elevada, de grande beleza literária, mas ressentindo-se de tanta solenidade e convencionalismo. Ao contrário, todas as criaturas desta peça (Romeu e Julieta), como as demais do teatro Shakespeariano, são vivas, reais, humanas, espontâneas, vivem as suas vidas em todos os seus aspectos e se expressam de acordo com os seus sentimentos e as circunstâncias como na vida real girando em cenas familiares ou solenes, tristes ou alegres, ao sabor da fatalidade e das paixões pessoais e não de conflitos morais.



Onestraldo de Pennafort







Bibliografia:
Cadernos de Teatro – O Tablado – nº 107- págs:
09,10,11,12,13,14 e 15









[1] “O jogo eu me lembro, mas não para um milhão”.
[2] “É sempre o Caviar do Rei”
[3] Fracionário correspondente, parte de uma publicação.
[4] Número que indica a paginação de uma publicação
[5] Não se lembrar; esquecer(-se).
[6] Regra geral donde se inferem regras especiais; - Relação, tabela; - Padrão ou norma.
[7] Inscrição no fim de manuscritos ou de livros impressos, com indicações sobre a feitura dos mesmos, o nome do copista ou do impressor, data, etc.
[8] Estudo das origens e tradições das famílias nobres – Os Nobres – A Nobreza.
[9] Exprime idéia de: lugar onde se está; tempo em que algo sucede, ou em que se faz alguma coisa; modo de ser; estado; destino ou fim de uma ação.