27 de outubro de 2008

O Duro Trabalho de Criação

Quando se vê a peça em cartaz, o livro publicado, a peça escrita, não se imagina o quão duro foi o trabalho de criação até que se chegasse ao resultado final. As noites em claro atrás da palavra perfeita, os ensaios intermináveis até a interpretação ideal, mas quase ninguém leva isso em conta.
O processo de criação é como a gestação de um filho e a tarefa árdua de conceber um trabalho bacana é por muitas vezes desgastante. É a idéia que emperra. É a emoção que não se consegue atingir. Ás vezes, quase que com o trabalho pronto, se percebe que não é bem aquilo que se buscava e tem-se de recomeçar. Não é fácil!
Não estou discutindo a questão da qualidade, ás vezes as pessoas concebem coisas ruins mesmo, mas nem por isso, não tiveram um trabalho duro de criação, mesmo que o resultado final mostre uma total falta de criatividade ou falta de talento. Mas, tem gente que não tem jeito pra coisa, mas isso é assunto para outro dia.
A questão é que todo trabalho artístico passa por um processo muito duro de criação, na maioria das vezes, extremamente exaustivo. É a idéia que não vem. É a palavra que não encaixa. É o gesto que não combina com a personagem, o andar, o se portar, o sotaque, nada combina. São muitas idas e vindas até o produto final, por mais simples que ele seja.
Só que muitas pessoas, depois do espetáculo em cartaz, do livro pronto, da peça escrita, fazem comentários monossilábicos ou críticas do tipo não gostei disso, não gostei daquilo. Tudo bem que a crítica pode falar o que quiser e o artista deve e tem de estar sempre preparado para recebê-la, por pior que seja, mas no mínimo, tem de se respeitar o duro trabalho de criação que o artista teve.
Mas é dificílimo alguém notar e comentar ou mesmo levar em conta, todo esse trabalho duro de criação que o artista tem de passar, não importando qual será o resultado final da arte produzida. Trabalhar com a criação é muito mais complicado do que possa parecer. Até mesmo se tratando de um simples artigo como este.
Por isso, sempre que for assistir a um espetáculo, for ler um livro ou uma peça de teatro, tenha em mente o quão duro o artista teve que dar até chegar ao ponto final, mesmo que na sua opinião o resultado tenha sido uma droga. Lembre-se sempre que sem que se haja o trabalho duro de criação, não se terá nenhum produto artístico, nem bom, nem ruim.

Escrito por Paulo Sacaldassy
Pubilicado originalmente no Site Oficina de Teatro

22 de setembro de 2008

O Teatro de Willian Shakespeare

Shakespeare e seu Teatro



Há uma impressão generalizada de que só os eruditos podem entender as peças de Shakespeare, mas – é óbvio – não as compôs o dramaturgo expressamente para leitura, e sim para agradar às multidões que assistiam aos espetáculos de sua companhia. Afirma-se, até, que certas cenas e expressões inconvenientes do seu teatro representam condescendências de mau gosto a uma camada inferior de espectadores. Há contrastes de linguagem e de idéias em suas peças que justificam essa crença, e o próprio dramaturgo, pela boca de Hamlet, implicitamente admite as transigências exigidas pela maior parte das platéias contemporâneas:
... “The play, I remember, pleased not the million
[1]” “twas caviare to the general[2]” (II, 2-457). Embora tivesse dado mais caviar às multidões do que necessário, Shakespeare não se despreocupava do alimento de substância...
Alguns de seus temas se reportam, por isso mesmo a estórias e lendas populares ou folclóricas, recriadas com os mais poderosos e sutis recursos da poesia e da música, que para ambas havia excepcional receptividade na época elisabetana.
Suas peças – com a incomparável poesia dramática e os famosos cantos que ressoam em muitas delas – exploram largamente a capacidade de escuta dos expectadores que, deste modo, acompanhando as representações, enriqueciam muito mais os ouvidos e a imaginação do que os olhos. Ainda por uma circunstância, e é que, devido à ausência de cenários, as indicações locais eram quase sempre feitas através da fala dos personagens. Isso obrigava os espectadores a uma atenção auditiva muito mais aguçada do que a exigida hoje pelo teatro.
A linguagem poética das peças shakespearianas supre magnificamente essa falha criando uma ilusão empolgante da realidade em todas as circunstâncias. Em determinada cena de Henrique V, impunha-se que os espectadores tivessem uma visão marítima. Surge o Coro, e projeta-se na imaginação do auditório, advertindo: “Oh! Tratai de pensar que estais sobre a praia e que observais uma cidade bailando sobre as vagas inconstantes; pois tal é o espetáculo que apresenta essa frota majestosa ao dirigir sua marcha direta para Harfleur”.
As representações se faziam sempre à luz do dia e, no entanto, é de noite que ocorrem algumas famosas cenas do teatro shakespeariano. Haja visto o primeiro ato de Hamlet, com a aparição do fantasma do rei ou o segundo de Macbeth, esse admirável drama cuja irrespirável atmosfera moral é uma emanação trágica da treva circundante. O maior encanto do último ato de Mercador de Veneza consiste em algumas sugestões lunares, entre as quais se conta uma das mais belas imagens da peça: “Como dorme o luar tão sossegado neste banco de verdura!”.
Uma vez entendido que, ante o limite das convenções, o dramaturgo, mais mágico do que lógico, não tinha mãos a medir nesse terreno, desfiando todas e quaisquer incongruências, será menos difícil assimilar a beleza de suas criações. Surge, porém outro problema ainda mais perturbador que o dessas criações: o da gênese propriamente de cada uma de suas peças. Não há prova direta de que qualquer delas tivesse sido escrita por Shakespeare, simplesmente porque de sua letra só se conhecem alguns fragmentos. Umas foram publicadas em vida do dramaturgo, outras depois de sua morte. Eis tudo. Quanto a autógrafos, existem apenas seis assinaturas do nome de Shakespeare consideradas como sendo autênticas: três delas estão no seu testamento.
Em 1916, baseando-se nesses autógrafos, um paleontólogo britânico atribuiu ao dramaturgo alguns trechos da peça Sir Thomas More, cujo manuscrito traz letra e emendas de outros colaboradores. Esse código é típico das irregularidades que apresentam os originais da época, sendo portanto naturais as intermináveis divergências entre os interpretadores de seus textos.
Como apareceram em letra de forma as peças de Shakespeare? Primeiramente em “Quartos
[3]” e depois em “Fólios[4]”. Aqueles têm duas classificações: “Bad Quarto” e “Good Quarto”. As deste último formato teriam sido impressas conforme os manuscritos autógrafos do dramaturgo. De um modo geral, os “quartos” eram prompt copies (livros de ponto), acreditando-se que algumas peças foram clandestinamente captadas por meio de estenografia. A piratagem editorial agia, então, com o maior desembaraço. Há uma interpretação crítica do Hamlet que surpreendeu nessa tragédia a alegoria de uma represália do dramaturgo aos espoliadores de suas peças.
Os editores do “Folio” adotaram a versão do desempenho teatral, publicando as peças exatamente como eram representadas. Se completas ou não, ignora-se, mas alguns pesquisadores encontram indícios de que foram omitidas linhas ou trechos de Shakespeare e acrescentando outros. Em conseqüência, sustentam que, na composição ou no arranjo final de suas peças, o dramaturgo teve colaboradores, e colaboradores às vezes medíocres, mas com influência sobre o preparo das mesmas para representação. Não se deve olvidar
[5], enfim, que as escreveu designadamente para o teatro, razão porque estariam em prompt copies quando foram levadas a imprimir.
A representação durava mais ou menos duas horas. Algumas peças excedem esse limite mas é de crer que fossem adaptadas, previamente aquele horário. Se não, será forçoso admitir a hipótese já articulada de que os atores falavam mais depressa do que pe habitual em nossos tempos. O Hamlet que, em um desempenho integral, exigiria cerca de quatro horas e meia, na cena moderna é como um gigante no leito de Procusto.
Há um cânon
[6] clássica que tem subsistido a todas as controvérsias em torno da autenticidade do teatro shakespeariano e assenta no seguinte: 36 peças atribuídas a Shakespeare no primeiro “folio”, publicado sete anos após seu desaparecimento; 13 já haviam sido estampadas no “Quarto”; 11 foram dadas como de sua autoria em 1598 quando o dramaturgo ainda existia, e 5 outras através de referências eventuais de seus contemporâneos. Faltava a peça Péricles incluída no terceiro “Folio”, que saiu em 1663.
Como as viram em cena os contemporâneos? Além da falta de cenários, sem pano de boca e sem interrupção, porque as peças não estavam dividias em atos e, em conseqüência, o auditório não tinha oportunidade de acompanhar por etapas o desenvolvimento da ação dramática. A impressão resultava do desempenho total, com se dá hoje, com os freqüentadores de cinema. Quando, posteriormente, as peças shakespearianas passaram a ser representadas de acordo com as divisões clássicas, isto é, em cinco atos, as inconstâncias se tornaram mais visíveis. Por sua vez, a leitura estudada dessas peças também criou uma nova escala de valores para o respectivo julgamento crítico, tão rigoroso às vezes que muitos letrados se esqueças de que Shakespeare as compôs para imediato desempenho cênico, tendo sido impressas com defeitos inerentes a essa finalidade.
Não há entretanto como condenar por isso a crítica shakespeariana; o maravilhoso fenômeno criador que a domina de maneira absorvente leva a imprevisíveis direções, sendo particularmente desconcertante a dos chamados desintegradores. Isto é, críticos que enxergam muitas mãos onde outros só vêem a do homem de Stratford-on-Avon.
O certo é que, no conjunto das peças atribuídas a Shakespeare, a poesia dramática aliada a várias concepções científicas e filosóficas, umas tradicionais, outras revolucionárias, forma uma idéia peculiar do Homem e do Universo que, pela unidade interior do pensamento e pela substância da linguagem, revela o predomínio de um gênio individual. O maior do mundo moderno.


Eugênio Gomes









Atualidade de Shakespeare




A literatura do passado vive realmente? Ou só existe entre a folha de rosto e o colofão[7] de volumes nas estantes? E pode chegar um dia em que, conforme Spengler, “um quadro de Rembrandt ou uma sonata de Beethoven só significarão um pedaço de pano e uma página de papel coberta por sinais incompreensíveis?”.
Shakespeare parece protegido contra esse destino porque é dramaturgo. É, no quinto século de sua existência, o dramaturgo mais representado do mundo: o que significa sua permanente atualização nos palcos. Mesmo se deixar de ser lido, ficará vivo dentro da pele dos atores. É esta sua atualidade permanente, garantida pelos grandes papéis que criou: Hamlet, Falstaff, Shylock, Lady Macbeth, Othello, Richard III. Mas advertimos que o tempo dos grandes virtuosos no palco já passou. Nenhum ator é, hoje em dia, elogiado por ser um Shylock ou um delicioso Falstaff. O cinema matou essa espécie de “estrelato”. Fracassaram e já estão esquecidas outras tentativas de “atualizar” Shakespeare, como a de representar “Hamlet” em trajes de hoje. Tampouco vale outra maneira de atualizar o dramaturgo, relacionando-lhe os enredos com acontecimentos e preocupações nossas que ele fatalmente ignorava: “Macbeth” como tragédia do ditador, “Coriolano” como revolta fascista reacionário e traidor, “Othello” como representação do problema racial e “Shylock” como alvo do anti-semitismo. “As you like it” como poesia de week-end e “A Tempestade” como alusão às utopias e como (personagem de Caliban!) profecia da revolta contra o colonialismo. Uma peça como “Rei Lear” nunca pode ser “atualizada”, nesse sentido, e passou realmente, durante muito tempo, por “impossível no palco” ou “da grandeza mítica, mas inatingível”.
Mas quando o “Rei Lear” foi no ano de 1984 representado em Paris pela Royal Shakespeare Company sob a direção de Peter Brook, então o público e a crítica parisiense, acostumados a gostar do dernier cri, reconheceram na velha peça um pessimismo existencial em comparação com o qual Samuel Becker parece “café pequeno”. É esta a verdadeira atualidade de Shakespeare: nossa experiência diferente descobre, ou melhor, descobre novas facetas da obra. Assim em “Othello”, a tragédia doméstica por excelência, nos interessa primordialmente Iago, a negação encarnada, um personagem dostoievskiano em trajes renascentistas. Compreendemos porque o dramaturgo cometeu o anacronismo de citar Maquiavel em “Richard III”. Empson descobriu o sentido social da poesia pastoril de “As you like it”. A erotomania do século XX ajuda para entender melhor a tragédia política de “Antônio e Cleópatra”. O mais difícil desses problemas é mesmo o amor.
Pois há mais de quatrocentos anos atrás as expressões petrarquistas do amor não estavam tão gastas como hoje. “Romeo e Julieta”, peça da mocidade de Shakespeare e ainda não no mesmo nível das grandes tragédias, só pode ser admirada como “a” tragédia do amor, com artigo definido, por gente moça, literariamente inexperimentada. Mas descobrimos hoje mais outras coisas nessa peça. Que é que faz tragicamente fracassar o amor dos dois jovens? É a honestidade insensata entre as duas famílias às quais pertencem, hostilidade que há muito perdeu o sentido. Razão tem Mercutio ao gritar mortalmente ferido e agonizante: “A plague over both your house!” A luta entre feudalismo e capitalismo nos países novo também faz pensar: “Uma praga sobre as vossas duas casas!”.
Os motivos políticos são freqüentes na sobras de Shakespeare. Representações de “Coriolano” já deram, em vários países, ensejo para manifestações violentas na platéia: o aristocrata romano que, por ódio contra a democracia, colabora com os inimigos de sua cidade, parecia o protótipo do fascista, e como fascista foi aplaudido e vaiado. Mas sabemos hoje que na situação de Coriolano é capaz encontrar-se o adepto de qualquer ideologia. Assim como “há fatalmente heréticos” assim há fatalmente os traidores. O problema de “Coriolano”, que só hoje compreendemos, é o da lealdade dividida.
Assim como Coriolano não é o protótipo do fascista, assim Macbeth não pode ser aquilo em que tantas representações depois e 1945 o transformaram: o tipo ditador despótico, um Hitler ou Mussolini ou Stalin medieval. Se fosse, seria incompreensível a simpatia trágica que o assassino Macbeth sempre inspirou e inspira a qualquer público. O tema da peça é a fraqueza humana do tirano, essa fraqueza que lhe coloca na boca as palavras da mais profunda poesia pessimista da literatura universal.
Essa interpretação também ajuda a eliminar da interpretação de “A Tempestade” as falsas “atualidades”, as alusões às utopias sociais e Caliban como símbolo (hostil aliás) das populações coloniais. O tema da peça é a própria ilha encantada, transformando todos que pisam nela. É a poesia. Por isso “A Tempestade” é, sempre se saiba disso, a mais poética de todas as obras de Shakespeare.
As pelo mesmo motivo esteve a peça durante séculos excluída dos palcos. Hoje, é das mais representadas. Mudaram muito as preferências. Em certos países latinos, um atraso dos conhecimentos ainda manda considerar “Hamlet”, “Julius Cesar” e “Romeo e Julieta” como as obras capitais de Shakespeare: e há pseudo “Scholars”, considerados assim porque sabem ler inglês, que mantêm o equivoco. As três peças são as maravilhosas manifestações do gênio de Shakespeare antes dele alcançar a plena maturidade. Sim, são obras da mocidade. Não podem ser perfeitas. “Hamlet” tampouco é perfeito; e reside justamente nisso seu encanto. T.S. Eliot foi o primeiro que reconheceu que Shakespeare não conseguiu dominar inteiramente o enredo complexo e que é isso a causa das obscuridades da peça. Daí a possibilidade de inúmeras interpretações que tão pouco chegam a resolver todos os problemas da peça. A obra é mesmo problemática. Tillard incluiu-a entre as “peças problemáticas” de Shakespeare, que antigamente foram todas elas, relegadas para o segundo plano, enquanto hoje inspiram o maior interesse. Assim “Timon”. Assim “Troilus e Cressida”. Assim “Medida por Medida”, antigamente quase nunca representada, porque o enredo – amores ilícitos, cenas de bordel etc. – parecia licencioso demais. Também foi muito censurada, porque a fabulosa lei, na peça, que pune de morte o amor extramatrimonial, produz cenas das mais trágicas na prisão e das horas angustiosas antes da execução – mas a peça acaba como comédia! Tentou-se aproveitar a impossibilidade intrínseca de uma lei daquelas para interpretar a peça como colocada num país de contos de fadas e tudo como mero divertimento teatral. Mas a luta, na peça, entre o puritanismo hipócrita da lei e a fraqueza humana dos seus agentes é representada com funda autenticidade, encontrando Shakespeare expressões de superior sabedoria política.
Na verdade, não precisávamos de nenhum Escândalo Profuso – isto seria a falsa atualidade da peça para compreender a estranha combinação que “Medida por Medida” apresenta: política e prostituição, moralismo puritano e erotismo irresistível, sentido e absurdo da lei e de todas as leis, licenciosidade e angústia, sexo e morte. A peça reflete a condição humana. E não há nada que seja de atualidade tão permanente como a condição humana.


Otto Maria Carpeaux





“Non sanz Droict”:
Em defesa de William Shakespeare




Passo a vida fascinada diante do número de pessoas que parecem considerar que é mais fácil escrever toda a vasta e eruditíssima obra de Francis Bacon e mais a íntegra da obra shakespeariana, ou escrever a juvenil e genial obra de Christopher Marlowe e mais a íntegra da obra shakespeariana, ou ser o inexpressivo 6º Conde de Derby, ou o modesto poeta lírico Conde de Oxford, ou mais meia dúzia de outros, e ainda escrever aquela mesma obra, do que simplesmente ser William Shakespeare, homem de teatro e gênio. Cada vez mais me convenço que essas teorias são criadas por quem não se conforma com a existência do gênio, sentindo-se por ele diminuído, injustiçado. E, no entanto, ninguém mais indicado para ser aceito como único e verdadeiro autor de sua obra quanto o gentil mestre Shakespeare, ator, autor, empresário, que tem a seu favor aquilo que só um entre os pretendentes ao título – Christopher Marlowe – pode, e assim mesmo em termos, reclamar para si: ser homem de teatro. Mas Marlowe morreu aos 29 anos, e a recôndita teoria que o ressuscita para escrever a obra de Shakespeare não convence a ninguém a não ser àqueles que não têm outro desejo senão o de serem convencidos mesmo antes de lê-la. E assim continuam as estantes das bibliotecas a serem periódica e dubiamente enriquecidas por um número surpreendente de obras de uma pseudo-erudição nas quais já foi perdida toda objetividade, toda ligação com a realidade. Shakespeare é descrito como um incompetente, analfabeto, quase retardado mental, sem nenhuma consideração sequer pelo respeito que Ben Jonson tinha pelo seu contemporâneo. E, no entanto, parece-me que a divisa que, por outras razões, Shakespeare adotou para o seu brasão de armas – Non Sanz Droict – sintetiza também o direito do homem de Stratford de reclamar para si o título de autor do mais importante conjunto de obras dramáticas até hoje no mundo.
Se não, vejamos. Shakespeare é a perfeita cristalização de uma escola teatral que foi desenvolvida na Inglaterra durante um período de quase cinco séculos; não existe no aparecimento desse autor nada de inesperado ou surpreendentemente revolucionário, seja em forma seja em conteúdo: é ausente de sua obra a erudição livresca de Ben Jonson, a disciplina intelectual de Spencer, o conhecimento quase que universal de Francis Bacon. É comum, por exemplo, a divisão da obra dramática shakespeariana em três gêneros: comédias, peças históricas e tragédias; ora, não só esses três gêneros já estavam estabelecidos como formas altamente características da dramaturgia elisabetana – tal como ela se definiu na obra os University Wits – como também todas três encontram suas raízes mais profundas nas formas medievais do Interlúdio, da Crônica e da Moralidade. A existência prévia dessas formas não diminui em nada a qualidade de Shakespeare, mas é preciso lembrar sempre que o teatro que esse homem escreveu foi um teatro primordialmente popular, escrito nas formas que mais atraiam a massa do povo de sua época. Se hoje em dia – e no nosso caso em outro país – há quem encontre dificuldade, por exemplo, com as longas listas de nomes de nobres que tomaram arte nesta ou naquela batalha, é preciso lembrar que os mesmos eram, para a massa do povo naquele tempo, tão familiares quanto seria hoje aqui os políticos mais conhecidos ou os campeões de futebol; tais argumentos não pretendem fazer mais do que lembrar o quanto à matéria shakespeariana era accessível a um homem inteligente, alerta, que recebera no gramma school de Stratford – um dos melhores da Inglaterra – ensinamentos de inglês, latim, retórica e religião: se Shakespeare não era formado por uma universidade, tão pouco era ele de origem tão humilde de não tivesse desde a infância a possibilidade de estar em contato (por pouco formal que fosse) com as correntes dominantes da cultura de sua época.
Em Stratford, é muito pouco provável que Shakespeare tivesse visto, no alço, mais do que alguma produção amadora de velhos textos medievais, a não ser que – como já foi aventado – tenha visto de respeitosa distância os luxuosíssimos festeiros do castelo de Kenilworth em 1575, quando Elizabeth foi hospede de Leicester: uma coisa ou outra seria o bastante para provocar a paixão elo teatro, que não exige experiências estéticas excepcionais para ser desencadeada, como é possível verificar por inúmeros exemplos contemporâneos. O grande mistério shakespeariano, na verde, é o período de dez anos de sua vida a respeito do qual não se sabe nada: ao 18 anos casa-se com Anne Hathaway, os três filhos nascem nos próximos três anos, mas só em 1592 (aos 28 anos) é que se encontram os primeiros documentos de sua atividade teatral, já reescrevendo peças e fazendo mais sucesso do que seria agradável aos autores que até então vinham dominando os palcos londrinos. É claro que deve ter chagado a Londres algum tempo antes, pois não é provável que fosse escolhido para reescrever peças logo no primeiro dia, mas como terá Shakespeare usado esses dez anos para preparação da carreira futura, até hoje não foi possível saber: uma velha tradição diz que seu primeiro emprego teatral foi o de tomar conta de cavalos dos espectadores durante o espetáculo, e a mim ela parece tão plausível quanto qualquer outra, se o objetivo de William Shakespeare era entrar para o teatro, não me parece que ele fosse tão esnobe que pudesse menosprezar a entrada das cavalariças desde que a porta eventualmente conduzisse ao interior do mundo sonhado.
Uma vez entrado nesse mundo a carreira de Shakespeare corre coerente, e progride de modo nunca surpreendente, desde que se admita o imponderável do gênio: sua primeira tarefa de reescrever material alheio bem como os hábitos teatrais da época contribuem para a soberana indiferença que sempre terá em relação à originalidade do tema: usa histórias, poemas, narrativas ou mesmo peças já conhecidas, e transforma-as em coisa sua, simplesmente por ver mais fundo o seu significado por dar-lhes maior intensificação poética, por encontrar aquele perfeito equilíbrio de forma e conteúdo que permite à idéia a sua realização total. Mas tudo isto vem aos poucos: a princípio, experimenta sucessivamente todos os gêneros em voga, com o que vai apurando ao mesmo tempo a técnica e o estilo. Ao mesmo tempo, escreve seus poemas longos (muito à feição da época) e os sonetos, com o que penetra no mundo da nobreza elisabetana, até mesmo do pequeno círculo literário dominado pela condessa de Pembroke. No teatro, na fervilhante cidade de Londres na corte e sua periferia Shakespeare respira no ar os pensamentos predominantes da época, capta com sua mente agilíssima a essência do mundo à sua volta, vê como vivem todas as camadas sociais, e de tudo isso se serve, mas se serve com amor, e quando põe no palco um assassino, uma dona de taverna ou um rei não nos mostra o que pensa deles mas si o que eles lhe mostraram que são.
A todos os momentos, Shakespeare é um homem de teatro: ator, conhece todos os segredos do palco, as possibilidades dos intérpretes e a capacidade do público para assimilar o que lhe é apresentado. Escreve sempre para o seu teatro, os seus atores e o seu público, e neste último encontra perfeita receptividade para os três gêneros dominantes: os amores e casamentos socialmente díspares das comédias eram plausíveis para quem via aventureiros receberem títulos nobiliárquicos[8]; o endeusamento dos heróis do passado inglês nas peças históricas correspondia a uma necessidade premente de realização em forma palpável da exaltação patriótica de um país em plena ascensão; e o triste destino de traidores ou favoritos de ontem, aliado à moralidade e filosofia reiteradas em inúmeros e longuíssimos sermões, davam ao público as coordenadas das tragédias que aplaudia delirantemente. Não se pode limitar o significado das peças Shakespearianas às simplificações acima, mas não procuro aqui mais do que indicar alguns dos caminhos da identidade entre o autor e público.
Com o passar do tempo o que acontece é m aprofundamento progressivo no tratamento: as peças históricas da segunda tetralogia, os homens são estudados com maior penetração do que nas comédias, e nas grandes tragédias com mais penetração do que as peças históricas, mas tudo depende daquilo que Shakespeare havia sempre estudado e daquilo que lhe era mais acessível para o estudo: a natureza humana. E sendo homem de teatro, ele sabia que, no palco, tudo tem de ser um pouco maior do que na vida real, pois nessa medida os problemas podem ser jogados com mais clareza e conseguem ocupar toda a imaginação do espectador obrigando-o a participar intensamente do espetáculo e levando-o assim a compreender melhor o mundo que o cerca.
Não é, portanto, sem direito que William Shakespeare, de Stratford, pode e deve ser apontado como o autor dessa vasta obra dramática. Muito pelo contrário, é justo que a sua figura individual fique um pouco na penumbra, pois o seu privilégio destino tornava necessário que ele abdicasse de uma personalidade marcante para se transformar numa espécie de corporificação da ética, estética e política elisabetanas, por intermédio da qual foi possível àquele período ser inteiramente retratado. Por sorte nossa a época era fluida, momento de grandes e graves mudanças sociais, políticas e filosóficas, o que torna a sua posição de autor-espelho imensamente rica. Para um homem como Bem Jonson, que queria reformar a sociedade, recuperando-a para padrões morais de um passado idealizado, é realmente necessária uma cultura excepcional; não para William Shakespeare, que queria apenas amar os homens, retratá-los e compreendê-los, grammar school de Stratford era trampolim mais que suficiente.


Bárbara Heliodora






A LINGUAGEM DE SHAKESPEARE



Sabendo que cada homem vive ao mesmo tempo na sua realidade cotidiana e no universo de seus pensamentos e de seus sentimentos, Shakespeare, utilizou um método que nos permitiu ver ao mesmo tempo o comportamento exterior e as elucubrações[9] de seu espírito. Pode-se distinguir facilmente, pelo ritmo da linguagem e a escolha das palavras, o momento em que nos aparece como um ser colocado na vida real, nominativo, tal como o poderíamos encontrar na rua; mas, na rua seu rosto pode ser anônimo e ele pode ficar calado. O verbo de Shakespeare dá densidade aos seus retratos. Tal é a finalidade de suas metáforas notáveis, de sua frases cheias de ressonâncias. Não se pode mais continuar pretendendo que tais obras sejam estilizadas, românticas nem prisioneiras de uma forma oposta ao realismo.
Nosso problema é levar o ator a compreender pouco a pouco essa invenção notável, essa curiosa estrutura de verso livre e de prosa – que era, há alguns séculos, uma espécie de cubismo teatral. Devemos levá-lo a buscar uma realidade mais profunda no verso, a realidade das emoções, das idéias, dos personagens, a encontrar com objetividade a forma que lhes dará a vida.



Peter Brook





Nós hoje consideramos Shakespeare um grande poeta, mas devemos ficar certos de que ele não escreveu com o intento de fazer literatura. Ele escreveu peças teatrais. Foi essa a sua profissão. Literatura ele só fez casualmente, com exceção dos seus poemas e sonetos. Não escreveu as suas peças para serem lidas, escreveu para que fossem representadas.
As traduções de Shakespeare devem ser escritas para os ouvidos e não para os olhos. Uma linguagem que se dirige aos ouvidos deve ser clara e direta, para que o ouvinte perceba cada palavra e chegue ao pleno prazer espiritual da obra. Há um preconceito muito duvidoso em certas camadas intelectuais. Acham os partidários desse preconceito que linguagem e estilo de uma grande obra de arte devem ser obscuras e ininteligíveis. Mas o espectador no teatro não tem tempo de traduzir um texto obscuro em linguagem corrente, naquele lapso de tempo que lhe deixa o fluxo das palavras para refletir. Cada palavra que ele não percebe perturba o espectador e prejudica o desenrolar da ação no palco e com isso o êxito da peça.



Willy Keller




Shakespeare apresenta uma harmonia excepcional entre conteúdo e forma; com isso, queremos dizer, não só que tem uma construção especificamente dramática para apresentar suas idéias, como também que encontra ritmos e sonoridades particularmente felizes para transmitir a ação por meio do diálogo. Para ilustrar essa identidade entre intenção e expressão, basta lembrar que após a morte de César (Julio César), falam Brutus e Marco Antônio: o primeiro apela para a razão e fala em prosa, o segundo, para a emoção e fala em verso.



Bárbara Heliodora




Traduzir Shakespeare em linguagem afetada ou literária em determinado sentido, pode ser a escusa para um mal compreendido horror ao anacronismo ou para um ridículo apego à famigerada nobreza de estilo, mas no fundo, tratando-se de Shakespeare, constitui uma traição, a pior delas, talvez. Compreender-se-ia tal sistema em relação a um Corneille ou a um Racine, cujas personagens, um tanto guindadas, se nos apresentam em atitudes hieráticas, nos atos culminantes das suas vidas, distanciadas do trivial e do quotidiano, o que as torna como que simbólicas, transformando as suas paixões em pura abstrações. Tal circunstância teria de se refletir na linguagem que falam, necessariamente elevada, de grande beleza literária, mas ressentindo-se de tanta solenidade e convencionalismo. Ao contrário, todas as criaturas desta peça (Romeu e Julieta), como as demais do teatro Shakespeariano, são vivas, reais, humanas, espontâneas, vivem as suas vidas em todos os seus aspectos e se expressam de acordo com os seus sentimentos e as circunstâncias como na vida real girando em cenas familiares ou solenes, tristes ou alegres, ao sabor da fatalidade e das paixões pessoais e não de conflitos morais.



Onestraldo de Pennafort







Bibliografia:
Cadernos de Teatro – O Tablado – nº 107- págs:
09,10,11,12,13,14 e 15









[1] “O jogo eu me lembro, mas não para um milhão”.
[2] “É sempre o Caviar do Rei”
[3] Fracionário correspondente, parte de uma publicação.
[4] Número que indica a paginação de uma publicação
[5] Não se lembrar; esquecer(-se).
[6] Regra geral donde se inferem regras especiais; - Relação, tabela; - Padrão ou norma.
[7] Inscrição no fim de manuscritos ou de livros impressos, com indicações sobre a feitura dos mesmos, o nome do copista ou do impressor, data, etc.
[8] Estudo das origens e tradições das famílias nobres – Os Nobres – A Nobreza.
[9] Exprime idéia de: lugar onde se está; tempo em que algo sucede, ou em que se faz alguma coisa; modo de ser; estado; destino ou fim de uma ação.

29 de agosto de 2008

O trabalho do ator


1.1. A abordagem por uma teoria das emoções:
De que precisamos para descrever o trabalho do ator? Precisamos realmente partir de uma teoria das emoções, como tenderia a sugerir a história do jogo do ator moderno, de Diderot a Stanislavski e Strasberg? Tal teoria das emoções aplicada ao teatro só valeria, no máximo, para um tipo muito localizado de ator: o do teatro da mimese psicológica e da tradição da retórica das paixões. Em contrapartida, teríamos a maior necessidade de uma teoria da significação e da encenação global, onde a representação mimética dos sentimentos é apenas um aspecto entre muitos outros. Ao lado das emoções, aliás muito difíceis de decifrar e de anotar, o ator-dançarino se caracteriza por suas sensações cinestésicas, sua consciência do eixo e do peso do corpo, do esquema corporal, do lugar de seus companheiros no espaço- tempo: eis parâmetros que não têm a fragilidade das emoções e que poderíamos assinalar com maior facilidade.
No teatro, as emoções dos atores não têm que ser reais ou vividas. Antes de mais nada, devem ser visíveis, legíveis e conformes com convenções de representação dos sentimentos. Essas convenções são ora as da teoria da verossimilhança psicológica do momento, ora as de uma tradição de jogo que codificou os sentimentos e a representação deles. A experiência emocional do ser humano, que reúne os traços comportamentais por meio dos quais a emoção se revela (sorrisos, choros, mímicas, atitudes, posturas), encontra no teatro uma série de emoções padronizadas e codificadas, que figuram comportamentos identificáveis. Estes, por sua vez, geram situações psicológicas e dramáticas que formam o arcabouço da representação. No teatro, as emoções são sempre manifestadas graças a uma retórica do corpo e dos gestos onde a expressão emocional é sistematizada, e até mesmo codificada. Quanto mais as emoções são traduzidas em atitudes ou em ações físicas, tanto mais elas se liberam das sutilezas psicológicas do indizível e da sugestão.
A teoria das emoções é por si só insuficiente para esperar descrever o trabalho do dançarino e do ator, e é necessário um quadro teórico totalmente diferente que ultrapasse em muito o da psicologia. Aliás, a partir do momento em que o estudo do ator se abriu para os espetáculos extra-europeus, logo se ultrapassou a teoria psicológica das emoções, que vale no máximo para as formas teatrais que imitam os comportamentos humanos, sobretudo verbais, de maneira mimética, como a encenação naturalista.


1.2. Uma teoria global do ator:
Será possível uma teoria do ator? Nada é menos certo, pois se pensamos saber em que consiste a tarefa do ator, temos bastante dificuldade em descrever e perceber o que ele faz precisamente, em compreender não simplesmente com os olhos, mas, como pede Zeami, com o espírito. Mal podemos dizer que ele parece falar e agir não mais em seu próprio nome, mas em nome de uma personagem que ele faz de conta ser ou imitar. Mas como é que ele procede, como realiza todas essas ações, e que sentidos produzem elas para o espectador? Bem temerária e ambiciosa seria a teoria que pretendesse englobar todas essas atividades de jogo e de produção do sentido, pois a ação do ator é comparável à do ser humano em situação normal, mas tendo, além disso, o parâmetro da ficção, do "como se" da representação. O ator situa-se no âmago do acontecimento teatral: é o vínculo vivo entre o texto do autor (diálogos ou indicações cênicas), as diretivas do encenador e a escuta atenta do espectador; ele é o ponto de passagem de toda e qualquer descrição do espetáculo.
Paradoxalmente, seria mais fácil basear a teoria do ator não a limitando à do ator ocidental, mas incluindo nela a do ator-cantor-dançarino de tradições e culturas extra- européias. Para essas tradições, a habilidade do ator é muito mais técnica, quer dizer mais facilmente descritível e estritamente limitada a formas codificadas e repetíveis que nada devem à improvisação ou à livre expressão. Nada comparável com o ator da tradição ocidental psicológica, o qual não adquiriu todas essas técnicas gestuais, vocais, musicais, coreográficas e se confinou a um gênero preciso: o teatro de texto falado. O ator ocidental parece sobretudo querer dar a ilusão de que encarna um indivíduo cujo papel lhe foi confiado numa história onde ele intervém como um dos protagonistas da ação. Daí a dificuldade em descrever o jogo ocidental, pois as convenções tentam negar-se a si mesmas; dificuldade também de esboçar uma teoria da sua prática, partindo do ponto de vista do observador (espectador e/ou teórico) e não do ponto de vista da experiência subjetiva do ator. Que faz o ator em cena? Como se prepara para a sua atividade artística? Como transmite ao espectador uma série de orientações ou de impulsos para o sentido? Não faremos aqui uma história do ator através dos tempos - aliás, isso ainda está por ser feito -, mas nos limitaremos a algumas observações sobre a metodologia da análise do ator contemporâneo ocidental, que não se deve, porém, limitar ao ator naturalista ou ao do Método, inspirado por Stanislavski e Strasberg. De fato, o ator não imita necessariamente uma pessoa real: ele pode sugerir ações por algumas convenções ou por um relato verbal ou gestual.
Precisaríamos primeiro estabelecer a partir de quando o ser humano está em situação de ator, em que consistem os traços característicos do seu jogo. O ator se constitui enquanto tal desde que um espectador, a saber um observador exterior, o olha e o considera como "extraído" da realidade ambiente e portador de uma situação, de um papel, de uma atividade fictícios ou pelo menos distintos da sua própria realidade de referência. Não basta, porém, que tal observador decida que tal pessoa representa uma cena e, portanto, que é um ator (estaríamos então no que Boal chama de "teatro invisível"): é preciso também que o observado tenha consciência de representar um papel para o seu observador, e que a situação teatral fique, assim, claramente definida. Quando a convenção se estabelece, tudo o que o observado faz e diz já não é considerado como verdade indiscutível, mas como ação ficcional que só tem sentido e verdade no mundo possível onde o observado e o observador concordam em situar-se. Assim fazendo, definindo o jogo como uma convenção ficcional, estamos no caso do ator ocidental que brinca de ser um outro; ao contrário, o performer oriental (1) (o ator-cantor-dançarino) que canta, dança ou recita, realiza essas ações reais enquanto ele mesmo, enquanto performer, e não enquanto personagem que faz de conta que é um outro fazendo-se passar como tal para o espectador. Empregamos cada vez mais o termo performer para insistir na ação realizada pelo ator, em oposição à representação mimética de um papel. O performer é primeiramente aquele que está física e psiquicamente presente diante do espectador.


1.3. Os componentes e etapas do trabalho do ator:
O ator ocidental - e mais precisamente o ator da tradição psicológica - estabelece o papel sistematicamente: "compõe" uma partitura vocal e gestual em que se inscrevem todos os indícios comportamentais, verbais e extraverbais, o que dá ao espectador a ilusão de ser confrontado com uma pessoa de verdade. Não só ele empresta o seu corpo, a sua aparência, a sua voz, a sua afetividade, mas - pelo menos para o ator naturalista - ele se faz passar por uma pessoa de verdade, semelhante àquela de que nos aproximamos quotidianamente, com quem podemos identificar-nos, tanto encontramos nela impressões de semelhança com o que sabemos de nosso caráter, de nossa experiência do mundo, das emoções e dos valores morais e filosóficos. Logo esquecemos de que estamos enganando a nós mesmos, construindo uma totalidade a partir de poucos indícios: esquecemos a técnica do ator, identificamo-nos com a personagem e mergulhamos no universo que ela representa. No entanto, o ator cumpre um trabalho bem preciso cuja complexidade nem sempre se imagina. Também não é fácil distinguir, como fazem Stanislavski e Strasberg, o trabalho sobre si mesmo e o trabalho sobre o papel. Enquanto o trabalho sobre si - a saber, essencialmente o trabalho sobre as emoções e sobre o aspecto exterior do ator - está no centro dos escritos de ambos, o trabalho sobre o papel, que determina toda uma reflexão dramatúrgica, fica bastante descuidado, vem sempre depois de uma preparação psicológica: o trabalho sobre o papel não deve começar antes de o ator ter adquirido os meios técnicos para realizar as suas intenções. Na realidade, há antes um ir e vir constante entre si mesmo e o papel, entre o ator e a sua personagem. O trabalho do ator sobre si mesmo compreende as técnicas de relaxamento, concentração, memória sensorial e afetiva, assim como o treinamento da voz e do corpo. Em suma: tudo o que é um prelúdio para a figuração de um papel.


1.4 Métodos de análise do jogo do ator:
Para contrabalançar a visão metafísica, e até mística, do ator (e todos os discursos mistificantes que o acompanham, sobretudo na literatura jornalística sobre "a vida dos atores"), para ultrapassar o debate estéril sobre o "reviver" ou o "fingir", só existiriam áridas análises técnicas do jogo do ator. Sendo ainda pouco elaborados os instrumentos de análise, nós nos limitaremos a sugerir algumas pistas possíveis para a pesquisa futura.


Os indícios da presença:
O primeiro "trabalho" do ator, que não é um trabalho, propriamente falando, é o de estar presente, o de situar-se aqui e agora para o público, como um ser vivo que se dá "diretamente", "ao vivo", sem intermediários. Dizem muitas vezes que os grandes atores têm antes de mais nada uma presença que é um dom do céu e que os diferencia dos necessitados. Talvez! Mas será que por definição todo e qualquer ator presente diante de mim não manifesta uma presença inalienável? É uma marca do ator de teatro que eu o perceba "primeiro" como materialidade presente, como "objeto" real pertencente ao mundo exterior e que depois eu o imagine num universo ficcional, como se não estivesse lá diante de mim, mas na corte do rei Luís XIV (se for de O Misantropo que estivermos falando). O ator de teatro tem, portanto, um estatuto duplo: ele é pessoa real, presente, e, ao mesmo tempo, personagem imaginário, ausente ou pelo menos situado numa "outra cena". Descrever essa presença é a coisa mais difícil que existe, pois os indícios escapam a qualquer apreensão objetiva e o "corpo místico" do ator se oferece e se retrai logo em seguida. Daí todos os discursos mistificadores sobre a presença de tal ou qual ator, discursos que são, na realidade, normativos ("este ator é bom, aquele não o é"). (2)


A relação com o papel:
A sua segunda tarefa é "permanecer na personagem", e, para o ator naturalista, manter o jogo, não quebrar a ilusão de que ele é essa pessoa complexa em cuja existência devemos acreditar. Isso requer uma concentração e uma atenção em todos os instantes, seja qual for a convicção íntima do ator quanto a ele ser a sua personagem ou seja qual for a sua técnica para dar-lhe simplesmente a imagem exterior. Ele pode, de fato, identificar-se com o papel por todos os tipos de técnicas de autopersuasão, seja enganar o mundo exterior fazendo de conta que é um outro, seja tomar suas distâncias com relação ao papel, citá-lo, zombar dele, sair dele ou nele entrar à vontade. Seja como for, sempre deve ser mestre da codificação escolhida e das convenções de jogo que aceitou. A descrição do jogo obriga a observar e a justificar a evolução do vínculo do ator com a sua personagem.


A dicção:
A dicção de um texto eventual é apenas um caso particular dessa estratégia comportamental: ora se torna verossímil, submetida à mimese e às maneiras de falar do meio em que se situa a ação, ora desconectada de qualquer mimetismo e organizada em um sistema fonológico, retórico, prosódico que possua suas regras próprias e não procure produzir efeitos de real copiando maneiras autênticas de falar.


O ator na encenação:
Graças ao controle do comportamento e da dicção, o ator imagina possíveis situações de enunciação onde o seu texto e suas ações adquirem um sentido. Essas situações, no mais das vezes, são apenas sugeridas por alguns indícios que esclarecem a cena e o papel. É a responsabilidade do encenador, mas também do ator, decidir que indícios serão escolhidos. Somente o ator sabe (mais ou menos) que escala os seus indícios gestuais, faciais ou vocais possuem, se os espectadores são capazes de percebê-los, e que significações ele poderia atribuir a eles. Na "posse" dos seus signos, é preciso que seja ao mesmo tempo suficientemente claro para ser percebido e sutil para ser diferenciado ou ambíguo. Neste sentido, a teoria do ator inscreve-se numa teoria da encenação, e, de modo mais geral, da recepção teatral e da produção do sentido: o trabalho do ator sobre si mesmo, em particular sobre as suas emoções, só tem sentido na perspectiva do olhar do outro, portanto do espectador que deve ser capaz de ler os indícios fisicamente visíveis da personagem assumida pelo ator.


Gestão e leitura das emoções:
O ator sabe administrar as suas emoções e fazer com que sejam lidas. Nada o obriga a sentir realmente os sentimentos da sua personagem e se toda uma parte da sua formação consiste, desde Stanislavski e Strasberg, em cultivar a memória sensorial e emocional para melhor encontrar, prontamente e com segurança, um estado psicológico sugerido pela situação dramática, trata-se apenas de uma opção entre muitas outras - a mais "ocidental", mas não necessariamente a mais interessante. Aliás, mesmo o ator do "Sistema" stanislavskiano ou do "Método" strasberguiano não utilizam os seus próprios sentimentos tais quais para representar a personagem, à maneira do ator romano Polus que usou as cinzas do seu próprio filho para representar o papel de Electra portando a urna de Orestes. É igualmente tão importante para o ator saber fingir e reproduzir friamente as próprias emoções, quando mais não fosse para não depender da espontaneidade, pois, como nota Strasberg, "o problema fundamental da técnica do ator está na não contabilidade das emoções espontâneas". Mais do que um controle interior das emoções, o que conta para o ator, em última análise, é a legibilidade, pelo espectador, das emoções que o ator interpreta. Não é necessário que o espectador encontre o mesmo tipo de emoções que na realidade; portanto, não é necessário que o ator se entregue a uma expressão quase "involuntária" de suas emoções. Na verdade, às vezes as emoções são codificadas, repertoriadas e catalogadas num estilo de jogo: assim ocorre no jogo melodramático, no século XIX, assim nas atitudes retóricas da tragédia clássica ou em tradições extra-européias (por exemplo, a dança indiana Odissi). Às vezes, os mimos ocidentais (Decroux, Marceau, Lecoq) tentaram codificar as emoções auxiliados por um tipo de movimento ou de atitude. Segundo Jacques Lecoq, "cada estado passional se encontra num movimento comum: o orgulho sobe, o ciúme obliqua e se esconde, a vergonha se abaixa, a vaidade gira".
Na prática contemporânea, desde Meyerhold e Artaud até Grotowski e Barba, o ator dá a ler diretamente emoções já traduzidas em ações físicas cuja combinatória forma a própria fábula. As emoções já não são, para ele, como na realidade afetiva, uma "perturbação súbita e passageira, ‘ gancho' na trajetória da vida quotidiana": são movimentações, motions físicas e mentais que o motivam na dinâmica do seu jogo, o espaço-tempo-ação da fábula onde ele se inscreve. Mais do que se entregar (para o ator como para o espectador ou para o teórico) a profundas introspecções sobre o que sente ou não sente o ator, é preferível, portanto, partir da formalização, da codificação dos conteúdos emocionais. De fato, é mais fácil observar o que o ator faz do seu papel, como ele o cria e se situa em relação a ele. Pois o ator é "um poeta que escreve sobre a areia (...) Como um escritor, ele extrai dele mesmo, da sua memória, a maestria da sua arte, ele compõe uma história segundo a personagem fictícia proposta pelo texto. Mestre de um jogo de engodos, ele acrescenta e diminui, oferece e retira; esculpe no ar o seu corpo movente e a sua voz mutável".
Na prática teatral contemporânea, o ator já nem sempre remete a uma personagem de verdade, a um indivíduo que forma um todo, a uma série de emoções. Ele já não significa por simples transposição e imitação: constrói as suas significações a partir de elementos isolados que pede emprestados a partes do seu corpo (neutralizando todo o restante): mãos que mimam toda uma ação; boca unicamente iluminada, excluindo todo o corpo; voz do contador que propõe histórias e representa alternadamente vários papéis.
Assim como para a psicanálise o sujeito é um sujeito "esburacado", intermitente, com "responsabilidade limitada", assim também o ator contemporâneo já não é encarregado de mimar um indivíduo inalienável; já não é um simulador, mas um estimulador, ele "performa" de preferência as suas insuficiências, as suas ausências, a sua multiplicidade. Também já não é obrigado a representar uma personagem ou uma ação de maneira global e mimética, como uma réplica da realidade. Em suma, ele foi reconstituído no seu oficio pré-naturalista. Ele pode sugerir a realidade por uma série de convenções que serão percebidas e identificadas pelo espectador. O performer, contrariamente ao ator, não representa um papel: ele age em seu próprio nome. (3)
Aliás, é raro, para não dizer impossível, que o ator esteja inteiramente no seu papel, a ponto de fazer esquecer que ele é um artista que representa uma personagem e que constrói, assim, um artefato. Mesmo o ator segundo Stanislavski não faz esquecer que representa, que está engajado numa ficção e que constrói um papel, e não um ser humano de verdade, como Frankenstein. Num palco, o ator nunca se permite esquecer enquanto artista-produtor, pois a produção do espetáculo faz parte do espetáculo e do prazer do espectador (sempre estou consciente de que estou no teatro e de que percebo um ator, portanto um artista, um ser artificialmente construído).


Identificação ou distância:
Muitas vezes o ator procura identificar-se com o seu papel: mil pequenas artimanhas servem para ele se persuadir de que é essa personagem de que o texto lhe fala e que ele deve encarnar para o mundo exterior. Ele faz de conta que acredita que a sua personagem é uma totalidade, um ser semelhante aos da realidade, quando na verdade ele só é composto de magros indícios que ele e o espectador devem completar e suprir para produzir a ilusão de ser uma pessoa. Às vezes, ao contrário, ele indica por uma ruptura de jogo que a manobra não o engana e ocorre que dê um depoimento pessoal sobre a personagem que supostamente está representando.


As categorias históricas ou estéticas:
Cada época histórica tende a desenvolver uma estética normativa que se define por contraste com as anteriores e propõe uma série de critérios bastante claros. Torna-se tentador, então, descrever uma série de estilos: romântico, naturalista, simbolista, realista, expressionista, épico, etc. O espectador moderno dispõe, muitas vezes, de uma grade histórica rudimentar que o ajuda a identificar, por exemplo, jogo "naturalista", brechtiano, artaudiano, do actor's studio ou grotowskiano. Momentos históricos e escolas de jogo são, assim, assimilados a categorias estéticas muito aproximativas. O interesse dessas categorizações é de não segmentar, separar o estudo do ator de todo o seu ambiente estético ou sociológico. O ator naturalista, por exemplo, o da época de Zola ou Antoine, será descrito a partir de uma teoria do meio, de uma estética do verossímil e dos fatos verdadeiros, de acordo com a ideologia e a estética determinista e naturalista. Muitas vezes, porém, a análise permanece superficial, e tautológica: é ator naturalista, dizem-nos freqüentemente, aquele que evolui num universo naturalista... Semelhante tautologia não esclarece em nada os gestos especificamente naturalistas e os procedimentos do jogo psicológico.
Melhor seria tentar uma hipótese sobre um modelo cultural que distingue no tempo e no espaço diversas maneiras de conceber o corpo e de se prestar a diferentes modos de significação.


As descrições semiológicas:
Elas dizem respeito a todos os componentes do jogo do ator: gestualidade, voz, ritmo da dicção e das marcações. É precisamente a determinação desses componentes e, portanto, a decupagem em sistemas que são problemáticos e não são evidentes, pois não é, nessa matéria, decupagem e tipologia objetiva e universal. Cada campo recorre às semiologias setoriais existentes para extrair os grandes princípios da sua organização. A dificuldade reside, porém, em não fragmentar o desempenho do ator em especialidades demasiado estreitas, perdendo assim de vista a globalidade da significação: tal gestual só tem sentido em relação a uma marcação, a um tipo de dicção, a um ritmo, sem falar do conjunto da cena e da cenografia de que ele faz parte. Devemos, portanto, procurar desenvolver uma decupagem em unidades que preservem coerência e globalidade. Em vez de uma separação entre gesto e texto, ou gesto e voz, nós nos esforçaremos por distinguir macro-seqüências dentro das quais os diversos elementos se reúnem, se reforçam ou se distanciam, formando um conjunto coerente e pertinente, suscetível depois de combinar-se com outros conjuntos. Poderemos também considerar o ator como o realizador de uma montagem (no sentido filmico do termo), já que ele compõe o seu papel a partir de fragmentos: indícios psicológicos e comportamentais para o jogo naturalista que acaba por produzir, apesar de tudo, a ilusão da totalidade; momentos singulares de uma improvisação ou de uma seqüência gestual incessantemente reelaborados, laminados, cortados e recolados para uma montagem de ações físicas em Meyerhold, Grotowski ou Barba. A análise da seqüência de jogo só pode ser feita levando em consideração o conjunto da representação, repondo-a na estrutura narrativa que revela a dinâmica da ação e a organização linear dos motivos. Assim, ela chega à análise da representação. Por exemplo, é possível distinguir, no trabalho gestual, vocal e semântico do ator, vários grandes tipos de vetores.
O vetor define-se como uma força e um deslocamento desde certa origem até um ponto de aplicação e segundo a direção dessa linha que vai de um ponto a outro. Distinguiremos quatro grandes tipos de vetores:
1. acumuladores; condensam ou acumulam vários signos; 2. conectores: ligam dois elementos da seqüência em função de uma dinâmica; 3. podadores: provocam uma ruptura no ritmo narrativo, gestual, vocal, o que torna atento ao momento em que o sentido "muda de sentido"; 4. mobilizadores: fazem passar de um nível de sentido a outro ou da situação de enunciação aos enunciados.
Esses vetores são o arcabouço muito elementar do trabalho do ator, que é, obviamente, muito mais fino e lábil, constituído por uma miríade de micro-atos, de matizes infinitos da voz ou do gesto. Eles são, no entanto, indispensáveis para que o ator seja, ao mesmo tempo, coerente e "legível" e que funcione como uma orientação e um amplificador para todo o resto da representação.
De fato, o ator só tem sentido em relação ao seus parceiros na cena: é preciso, portanto, anotar como ele se situa diante deles, se o seu jogo é individualizado, pessoal ou típico do jogo do grupo; como ele se inscreve na configuração (o blocking, como se diz em inglês) do conjunto. Como, porém, descrever o gesto por um discurso sem que ele perca toda e qualquer especificidade, todo e qualquer volume, toda e qualquer intensidade, toda e qualquer relação vivificante com o resto da representação? O trabalho do ator compreende-se apenas se for recolocado no contexto global da encenação, lá onde ele participa na elaboração do sentido da representação inteira. Anotar todos os detalhes não serve para nada, se não virmos em que esse trabalho se prolonga na representação inteira.


Pragmática do jogo corporal:
A descrição do ator exige uma abordagem ainda mais técnica para apreender a variedade do trabalho corporal executado. Partiremos, por exemplo, da pragmática do jogo corporal tal como a descreve Michel Bernard ao determinar os sete operadores seguintes:
1. A extensão e a diversificação do campo da visibilidade corporal (nudez, mascaramento, deformação, etc.). Em suma: da sua iconicidade.
2. A orientação ou disposição das faces corporais relativamente ao espaço cênico e ao público (face; costas, perfil, três quartos, etc.).
3. As posturas, quer dizer, o modo de inserção no solo e mais amplamente o modo de gestão da gravitação corporal (verticalidade, obliqüidade, horizontalidade...).
4. As atitudes, quer dizer, a configuração das posições somáticas e segmentares com relação ao ambiente (mão, antebraço, braço, tronco/cabeça, pé, perna...).
5. Os deslocamentos ou as modalidades da dinâmica de ocupação do espaço cênico.
6. As mímicas enquanto expressividade visível do corpo (mímicas do rosto e gestuais) em seus atos tanto úteis quanto supérfluos, e, conseqüentemente, do conjunto dos movimentos percebidos.
7. A vocalidade, quer dizer, a expressividade audível do corpo e/ou dos substitutos e complementos (ruídos orgânicos naturais ou artificiais: com os dedos, os pés, a boca, etc.).
Estes sete pontos de referencia de Michel Bernard possibilitam uma discussão precisa da corporalidade do ator, o que é um meio de anotar e de comparar diferentes usos do corpo. Poderíamos acrescentar-lhes outros dois: os efeitos do corpo e a propriocepção do espectador.
8. Os efeitos do corpo. O corpo do ator não é um simples emissor de signos, um semáforo regulado para ejetar sinais dirigidos ao espectador; ele produz efeitos sobre o corpo do espectador, quer os chamemos energia, vetor de desejo, fluxo pulsional, intensidade ou ritmo. Como veremos mais adiante com a análise de Ulrike Meinhof, tais efeitos são mais eficazes do que uma longa explicação de signos gestuais pacientemente codificados e depois decodificados na intenção de um espectador-semiólogo "médio". Daí esta observação de Dort: o ator seria o anti-semiólogo por excelência, já que destrói os signos da encenação em vez de os construir.
9. Propriocepção do espectador. Já não se trata diretamente de uma propriedade do ator, mas da percepção interna, pelo espectador, do corpo do outro, das sensações, dos impulsos e dos movimentos que o espectador percebe do exterior e transfere para si mesmo. (4)


As "técnicas do corpo" para uma antropologia do ator:
As "técnicas do corpo" para uma antropologia do atorTodas as descrições da semiologia e da pragmática preparam para uma antropologia do ator, ainda a inventar, que formularia do modo mais concreto possível perguntas ao ator e a seu corpo, perguntas que a análise do espetáculo deve sistematicamente dirigir a toda e qualquer encenação.
1. De que corpo o ator dispõe antes mesmo de receber um papel? Em que ele já está impregnado pela cultura ambiente e como esta se alia ao processo de significação do papel e do jogo? Como o corpo do ator "dilata" a sua presença assim como a percepção do espectador?
2. Que é que o corpo mostra, que é que o corpo esconde? Que é que a cultura, de San Francisco a Ryad, aceita revelar para nós da sua anatomia, que é que ela escolhe para mostrar e esconder, e em que perspectiva?
3. Quem é que segura os cordéis do corpo? Ele é manipulado como uma marionete ou dá por si mesmo, e por dentro, suas ordens de marcha? E onde é que o piloto tem sua sede?
4. O corpo é centrado sobre si mesmo, levando toda e qualquer manifestação a um centro operacional de onde tudo parte e para onde tudo volta? Ou então o corpo está descentrado, colocado na periferia de si mesmo, tendo importância sobretudo para o que já está apenas na periferia?
5. Que é que, no seu meio cultural ambiente, passa por um corpo controlado ou por um corpo "desenfreado"? Que é que será vivido como um ritmo lento ou rápido? Em que o afrouxamento ou a aceleração de uma ação mudarão o olhar do espectador, solicitando o seu inconsciente ou provocando a sua exaltação?
6. Como o corpo do ator, corpo que fala e que representa, convida o espectador a "entrar na dança", a adaptar-se ao sincronismo e a fazer convergir os comportamentos comunicacionais?
7. Como o corpo do ator/atriz é "vivido" visualmente? Cineticamente ao perceber o movimento? Hapticamente (efetuando o movimento)? Em perspectiva desordenada ou então vinda de dentro, segundo que acontecimento cinético e estésico? Como estimula a memória corporal do espectador, sua motricidade e sua propriocepção?
8. Em suma, para formular a pergunta junto com Barba, o ator muda de corpo a partir do momento em que troca a vida quotidiana pela presença cênica e pela energia abundantemente dispensada? Em que ele continua sempre, para o espectador, um "estrangeiro que dança" (Barba)? (5)


Notas:
(1) Para um excelente panorama histórico, ver Robert Abirached, "Les jeux de l'être et du paraître" [Os jogos do ser e do parecer], Le Théâtre [O Teatro]. Paris: Bordas, 1980. [volta]
(2) Sobre a crítica da presença na teoria do ator, sobretudo em Barba, ver Patrice Pavis. "Un canoé a la dérive?" [Uma canoa à deriva?], Théâtre/Public, n' 126, 1995. [volta]
(3) Lee Strasberg. L' Actor‘s Studio et le méthode [0 Actor' s Studio e o método]. Paris; Interéditions, 1989. p. 177. Jacques Lecoq (ed.). Le Théâtre du geste [O teatro do Gesto]. Paris: Bordas, 1987. p. 20. Antoine Vitez. Le Théâtre des idées [O Teatro das Idéias]. Paris: Gallimard, 199l. p, 144. [volta]
(4) Michel Bernard. "Quelques réflexions sur le jeu de l'acteur contemporain" [Algumas reflexões sobre o jogo do ator contemporâneo], Bulletin de psychologie, t. XXXVIII, nº 370, 1986. Bernard Dort. La Représentation émancipée [A Representação Emancipada]. Arles: Actes Sud, l988. p. 183. [volta]
(5) Eugenio Barba. The Secret Art of the Performer [A Arte Secreta do Ator]. Londres: Routledge, 1991. p, 84. [volta]
In "L' analyse des spectacles; théâtre, mime, danse, danse-théatre, cinéma", Col. Fac./Arts du spectacle. Paris; Nathan, 1996, p. 53-65. - Tradução de José Ronaldo Faleiro.
Texto Publicado na Comunidade do Orkut "O Ator - Patrice Pavis" por Luciano Loureiro